Saber usar a tecnologia é ser um “alfabetizado digital”? Não necessariamente.
Quando dizemos que uma pessoa foi alfabetizada, estamos afirmando que ela possui duas habilidades no uso de uma língua: leitura e escrita. Sem uma delas, não se pode dizer que há domínio pleno do idioma.
Ler não é apenas conhecer as letras e saber pronunciar as palavras, mas ser capaz de interpretar um texto, entendendo as ideias expressadas pelo autor. Já a escrita, componente igualmente importante do processo de alfabetização, consiste em estar preparado para utilizar a língua para a expressão de ideias próprias. Com a leitura, podemos captar ideias que estavam na cabeça de outras pessoas. Com a escrita, podemos pegar ideias de nossa própria cabeça e transmití-las aos outros. Imagine um WhatsApp onde você pode apenas enviar ou apenas receber mensagens: na mesma situação está uma pessoa sem os dois lados da alfabetização.
Em tempos cada vez mais digitais, cunhou-se também a expressão “alfabetismo digital”. Normalmente, é chamada de analfabeta digital a pessoa que não é capaz de utilizar a tecnologia a seu favor. Porém, será que pensando nos dois componentes essenciais — leitura e escrita — , poderíamos definir o que seria a alfabetização digital integral?
A leitura é simples. “Ler” tecnologia é ser capaz de usá-la. Se você pode pegar seu celular, abrir um aplicativo e utilizá-lo, você já entende os conceitos essenciais que te permitem usar programas. Você sabe, por exemplo, que você pode apertar os botões, que o texto neles diz respeito à ação que realizam (salvar, enviar, etc), que caixas de texto são para que você escreva, etc. Hoje, para você, tudo isso é trivial, assim como ler este texto (afinal, você já chegou até aqui!). Porém, um analfabeto digital completo, frente às interfaces que usamos todos os dias, provavelmente se sentiria como você se tentasse ler A Metafísica dos Costumes, do filósofo Immanuel Kant, em húngaro. As palavras ali não têm significado e, mesmo que individualmente tivessem, o significado que elas adquirem juntas ainda não é simples.
Por outro lado, o que seria a escrita digital? Invertendo a equação da leitura, temos uma resposta simples: é ser capaz de fazer a tecnologia funcionar segundo as suas próprias ideias. “Ler” um aplicativo para celular é entender onde apertar e o que escrever para que ele desempenhe sua tarefa. “Escrever” é, por sua vez, criar o aplicativo, colocar os botões e outros componentes aqui e ali, e descrever para o aparelho o processo a ser realizado quando o usuário apertar cada botão. O que é “lido” ou “escrito” são os programas. Apenas agora há um terceiro agente no processo de comunicação: a máquina. O programa escrito é um processo, que pode ser interpretado e executado por um sistema computacional, como um celular ou notebook, ou por uma pessoa, caso ela disponha do seu código e, claro, seja capaz de entendê-lo. Esse processo de escrever um programa é o que chamamos de Programação.
Por esse raciocínio, seríamos obrigados a dizer que a grande maioria das pessoas não é completamente alfabetizada do ponto de vista digital, já que domina apenas a utilização dos programas escritos por outras pessoas.
Mas será que isso seria justo? Será que a Programação é realmente uma habilidade tão importante para que o alfabetismo digital dependa dela? Afinal, podemos facilmente usar um carro sem saber como ele funciona por dentro. Usamos seus pedais e painéis e o guiamos para onde quisermos sem necessariamente podermos explicar o que faz o diferencial — quem dirá construir um.
Porém, como compara o teórico de mídias Douglas Rushkoff, não saber programar não é equivalente a usar um carro sem entender como ele funciona. Na verdade, é como se a tecnologia fosse mesmo o carro, mas estivéssemos no banco de trás. Mais que isso, as janelas desse carro estariam todas fechadas e seriam escuras. O motorista — a pessoa que domina a programação — é então quem nos guiará pela cidade. Porém, sem a capacidade de interferir no processo, nem mesmo criticá-lo, somos obrigados a aceitar tudo. Se o motorista pára em uma padaria e nos diz que é a única da cidade, que só aí podemos comprar pão, como poderemos contestar? Se diz que tomou o melhor caminho até aí, como argumentaremos que não foi? Ou se nos disser que não quer nos levar ao parque de diversões, o que faremos sem poder dirigir o carro? Não há resposta possível. Da mesma forma, sem programar, somos obrigados a aceitar os programas como são, e cruzar os dedos para que não travem, façam o que deveriam fazer (o que nos dizem que fazem), e que tenham as funcionalidades que queremos. Caso contrário, temos que esperar que alguém que programe adaptem-nos segundo nossas necessidades — que nosso motorista nos leve aonde queremos. “Programe ou seja programado” é o lema do autor para a era digital, levado para o título de um de seus livros.
Apesar de poder parecer complicado, os princípios da Programação são simples e a Loopye acredita que podem ser aprendidos por qualquer um. Não somos apenas nós: vários países, como Reino Unido (onde o ensino da Programação já é obrigatório em todas as escolas desde 2014), Estados Unidos (onde Obama comprometeu $4 bi para levar a programação a todas as escolas) e mesmo nossos vizinhos argentinos (onde o Ministério da Educação já declarou a importância estratégica do ensino da Programação para o país) também já aderiram ao movimento.
Além disso, assim como não aprendemos português para nos tornarmos escritores necessariamente, nem matemática para nos tornarmos matemáticos, mas apenas para termos ferramentas que nos ajudem a viver, não precisamos aprender programação básica para nos tornarmos profissionais da tecnologia. Não apenas esse conhecimento nos permite criticar e entender o mundo tecnológico de uma maneira mais profunda, mas também se torna uma ferramenta nas mãos de todo tipo de profissional — não apenas programadores! Engenheiros, geógrafos, cientistas sociais, biólogos, pesquisadores de todas as áreas e até mesmo artistas podem utilizar a programação como parte de seus trabalhos. Se dominarem esta ferramenta, é claro.
Já imaginou um mundo em que a criação tecnológica não estivesse centralizada em algumas empresas, mas onde todos pudessem entender e inclusive ajudar a construir os programas que utilizamos todos os dias? Esse é o mundo em que acreditamos e que estamos trabalhando para que se torne realidade.