Você acredita em ilusões. Suas ideias não correspondem aos fatos. Sua leitura sobre as próprias atitudes não é lá tão precisa. Arrisco dizer que você até infringe a lei com alguma frequência.
Mas tudo bem. Isso também é válido para mim e para todas as pessoas que conheço. A frase "errar é humano" já foi mais usada - de tanto, perdeu o significado. Lembro-me de uma época em que virou brincadeira na escola, tempos de ensino fundamental, dizer que "errar é humano" como desculpa. Por exemplo, se escreveu que o resto da divisão de 5^132 por 15 é 9 na prova de matemática, e não 10, e perdeu ponto (e como errar contas e fórmulas, duas coisas que de forma alguma são a matemática, tirava pontos!), a pessoa atingida iria até a mesa da professora dizer, fazendo cara séria: "Professora, olha aqui a questão 3. Você riscou como errada. Mas pense comigo: eu sou humano, né? E você me tirou pontos porque eu errei, né? Mas errar é humano! Você não pode me culpar por ser humano!". A turma ria de cada professor que começava relendo a questão 3, achando que era algo sério. Alguns poucos professores até riam também. Talvez da cara de pau e da falta de graça.
Em algum ponto da vida, subitamente, errar deixou de ser humano; passou a ser diabólico. Afinal, quem erra? O Cunha erra, falta com a ética, com a vergonha na cara e com os próprios princípios religiosos da sua igreja. A Dilma comete erros inimagináveis para alguns, enquanto que, para outros, não pertence à classe vergonhosa dos pecadores. Detentos erraram e estão pagando por isso. Hitler errou tanto, mas tanto, que virou símbolo do erro. Diz a Lei de Godwin que à medida que uma discussão na Internet cresce, a probabilidade de que alguém faça alguma comparação envolvendo nazistas ou Hitler se aproxima de 100%. Minhas observações experimentais recentes corroboram esse resultado teórico.
Essa galera toda aí erra, errou e continua errando. Mas e nós, cidadãos de bem, que dormimos de consciência tranqula com a moral e com os bons (bons?) costumes? A frase "você está errado" nos assusta, mas não deveria. A frase "você não é perfeito" não impressiona, porque, falando dessa forma é óbvio, não? Mas, imperfeitos que somos, é natural imaginar que essa imperfeição se expressa em toda atitude, a todo momento, mesmo que de maneiras sutis, mesmo que ninguém note, reclame, nem se sinta ofendido ou prejudicado por nós. Comecemos por aqui: sermos imperfeitos significa que, a todo momento, estamos ao menos um pouco errados, no sentido de que poderíamos fazer tudo melhor (para qualquer conceito razoável de "melhor").
Pensar nisso não se tornou um costume nosso (não tratamos de colocar isso nos "bons costumes"). Ainda assim, possuímos uma habilidade enorme para identificar erros. É fácil, ao menos para a maioria dos que conheço, simpatizar com as pautas do movimento feminista e ter repúdio à nossa sociedade ainda longe de liberta da herança patriarcal. São evidentes os erros que a Samarco cometeu em Bento Rodrigues, episódio de nos fazer assustar com os limites da negligência. E qual é a dúvida ainda sobre a quebra de decoro parlamentar do Cunha? Disse, em CPI, que não tinha contas no exterior, ao que a Suíça responde em pouco tempo, com investigação que congelou $5 milhões em contas das quais ele era beneficiário. É óbvia a mentira aí, certo?
É óbvio, tudo óbvio. Menos quando os machistas, negligentes e mentirosos somos nós mesmos. Sendo imperfeitos, deveria ser natural pensar que carregamos um pouco (no melhor dos casos) de todos esses adjetivos. Se alguém disser que nunca erra a respeito de um único aspecto que seja, vou ser compelido a acreditar apenas pela coragem. E daí? Podemos parar no "Herrar é o mano", ou podemos, de fato, tentar melhorar as coisas. Isso não vai mudar o fato de que vamos continuar errados no sentido estrito da coisa.
Ler os posts de #meuamigosecreto e achar que passamos longe de todos é fácil. Começar a nos observar com o risco de descobrir que, quem sabe, não cultivamos atitudes machistas, mesmo que absorvidas por osmose, não é tanto. Xingar a Samarco e a Vale no Twitter? É pra já. Mas será que quem gera essa enorme demanda por minério de ferro, que dá origem às mineradoras como são e a esse esforço incessante por extrair mais com menos dinheiro, mesmo que isso signifique arriscar vidas, somos nós quando queremos trocar de carro todo ano? Pode ser, mas isso é ruim, porque estabelece alguma relação entre nós e o problema. Parar em vaga de deficiente, não devolver o troco errado, colar em prova - se ninguém viu, ninguém reclamou, qual o problema? O mesmo que pegar uns milhõezinhos de uma empresa estatal de valor de mercado bilionário: nenhum, certo? Será que a falta de água em várias cidades do Brasil não tem nem uma relaçãozinha com nosso banho de meia hora?
Há um problema psicológico já muito bem estudado envolvido aí. Temos dificuldade de mudar de opinião, e isso não é só senso comum, e acontece mesmo quando dizemos que concordamos com as evidências. Ilustro com um experimento sobre um fenônemo chamado difusão da responsabilidade, executado por um psicólogo de Michigan, Richard Nisbett. É um nome bonito para o pensamento: "tem muita gente para fazer algo; logo, não preciso fazê-lo". O problema é que a grande maioria de nós pensa assim na maioria das situações em que alguém, mas ninguém especificamente, precisa fazer algo.
O experimento foi o seguinte: um grupo de seis pessoas era convidado a participar de um experimento sobre "ajuda mútua" (mentira). Uma dessas pessoas é um ator. Tudo acontece em uma configuração em que cada pessoa fica em uma cabine, e todas se comunicam por um interfone. Apenas uma pessoa por vez fala e todas as outras escutam. Elas eram incentivadas a falarem sobre sua vida e problemas pessoais, trocarem experiências e se ajudarem. O ator começa, falando de si. Ele conta que está tendo dificuldades de se adaptar à nova cidade, e depois de certo tempo admite, com vergonha evidente, que tem convulsões de vez em quando. Depois que todos os outros participantes falam de si, o microfone volta ao ator, que começa falando naturalmente, mas mostra severas alterações na voz depois de um tempo. Suas últimas palavras são: "A-alguém p-o-de me a-j-u-d-ar... Vou mor-rer... vou mor-rer... con-vul-são...". O microfone então passa para o próximo participante.
Temos a ideia pré-concebida de que somos propensos a ajudar alguém que precisa de ajuda. Esperamos que isso se reflita no experimento. Mas o resultado é ruim. Em média, de cada 15 participantes, apenas 4 foram ajudar o ator imediatamente. 5 foram ajudar depois de bastante tempo, e 6 nunca saíram de suas cabines até serem instruídos pelos pesquisadores. Afinal, todo mundo ouviu a pobre pessoa. Talvez eu possa ficar aqui na minha cabine tranquilo enquanto alguém vai lá. Se for muita gente vai dar tumulto, também. E o experimento? Se todo mundo for, os pesquisadores vão ficar sem resultados. É, não é tão difícil, em três segundos, decidir que ficar sentado talvez não seja um pecado capital.
As pessoas que participaram do experimento eram alunos universitários de uma das melhores universidades americanas. Pessoas normais, bem instruídas, nas quais dificilmente vamos encontrar características que repudiaríamos em especial. O que nos leva a crer que, em média, as pessoas, quando submetidas a essa situação (e a outras muito mais leves) tenderiam a não ajudar. Se aceitamos a validade do método científico, devemos ao menos admitir que existem boas evidências para que pensemos assim. Talvez em média as pessoas não sejam tão propensas a ajudar.
Concluir isso com esse experimento é fácil. O problema é que concordar com essa conclusão ainda não nos leva a mudar de ideia. Posteriormente, o seguinte experimento foi feito. Os resultados desse primeiro experimento são contados a outros alunos. Depois, pergunta-se se eles concordam que a conclusão deve ser que "as pessoas, em média, não são muito propensas a ajudar as outras quando alguém mais poderia fazer isso". Todos concordam. Após isso, são mostrados dois vídeos de uma estudante mulher e um homem falando sobre suas vidas. Os vídeos foram cuidadosamente projetados para não dar nenhuma informação relevante sobre as pessoas - elas simplesmente falam coisas que são esperadas de um universitário qualquer: saem com amigos, estudam muito, se sentem cansados, às vezes viajam nas férias, têm hobbies, etc. Depois, é perguntado o que a pessoa acha que esses dois alunos, se participassem do experimento, teriam feito. A grande maioria responde que provavelmente os dois estudantes teriam ajudado o ator imediatamente. Mas ela havia acabado de concordar que a conclusão mais racional seria outra, e não ganhou qualquer informação que a deveria fazer concluir algo diferente sobre os dois estudantes em particular. Contudo, essa conclusão contradiz uma crença prévia de que a maioria das pessoas ajudaria imediatamente. É difícil mudar essa crença.
Isso quando essa crença é sobre outra pessoa. E quando é sobre nós mesmos? Quem tem coragem de admitir que provavelmente, naquela situação, também teria agido como a maioria dos seres humanos? Isso requer uma quantidade brutal de honestidade - com nós mesmo. Essa dificuldade é natural. Pensamos que somos pessoas boas. Nada de errado com isso. Mas somos também sujeitos ao Efeito Halo - basicamente, é difícil concebermos uma pessoa boa com atitudes ruins ou vice-versa. Então, ao conhecermos uma pessoa, formamos uma opinião sobre ela a partir de algum aspecto mais notório e tendemos a carregar aquela opinião para todas as suas características que não observamos. É uma pessoa agradável? Deve ser também boa em pôker e, se sujeita a um experimento sobre difusão de responsabilidade, certamente será uma das pessoas que vão ajudar imediatamente. Ou você consegue imaginar uma pessoa boa que você conhece (pense em alguém legal) jogando lixo no chão? Não dá, né?
Acredito que isso se reflita na forma como vemos nossas próprias atitudes. Nos consideramos pessoas boas - logo, qualquer atitude nossa deve partir dessa essência. Se não parece boa, temos uma justificativa. Qualquer evidência contrária, que mostra que talvez não sejamos tão bons assim, dificilmente colabora para que admitamos que estamos errados. E, se não nos consideramos errados, não há por que mudar de atitude.
Queremos um mundo melhor. Queríamos muito que os problemas lá fora fossem resolvidos. Queremos solução. Mas, antes disso, acredito que devamos admitir que somos também parte do problema. Sem isso, vamos continuar a ser ovelhas no meio de lobos - ou pensar que somos. Errar é humano. Vamos fazer com que aceitar isso e tentar fazer melhor seja também.