Ônibus musical

Alguém entrando no ônibus deu boa noite em alto e bom tom ao motorista. Será um vendedor de balas? - perguntou o preconceito. Não era. Era um cara que devia ter seus 35 anos, cabelos cacheados e carregando um violão nas costas. Estava um pouco cansado, mas isso era quase imperceptível, principalmente pelo fato de que as pessoas não se importam muito em perceber os estranhos entrando no ônibus. Um homem sangrando também seria quase imperceptível.

Mas eu ouvi bem o “Boa noite!” e percebi também que o motorista não respondeu. Quase imperceptível. O homem, sem perder seu ânimo - nem seus leves traços de cansaço: brilho de suor nas maçãs do rosto, olheiras e um leve esforço para não deixar que a falta de resposta o faça esquecer de dar outro boa noite -, olhou para o trocador e, enquanto entregava seus 3 reais e 10 centavos da passagem, lançou, novamente: “Boa noite”! Mas, como que percebendo que o trocador, de cabeça baixa e agindo como trocadores agem em dias normais (trocando o dinheiro), não estava acostumado a saudações alegres de desconhecidos no seu ambiente de trabalho, completou, também em voz alta: “É, Rogério, que pena que ele está muito ocupado para me dar boa noite! Mas pelo menos fiz minha parte, né?”. O trocador trocando o dinheiro, e o Rogério, menino de uns 17 anos, atrás do violonista desconhecido, sorrindo timidamente sem saber o que dizer. Eu também não saberia.

“Poxa! O cara deu dois ‘boa noites’ e não recebeu nenhum…”, pensei. E nisso, comecei a olhar para seus olhos na esperança de que ele me visse e eu o pudesse cumprimentar. E como eu estava a menos de um metro de distância, isso não demorou a acontecer.

– Boa noite! - disse eu, quando ele me olhou. – Boa noite! Tranquilo? – Tranquilo, e você? – Bom também. Isso aí, é assim que tem que ser. Vou até sentar do seu lado agora. – Senta aí.

Um passageiro normal se sentaria, esperaria seu ponto em silêncio e sem olhar para os lados, daria sinal de parada, se levantaria, seguraria para não cair com a freada do ônibus e, se tivesse sucesso, desceria pela escada, nunca mais sendo visto. Mas - ah! - esse não era um passageiro normal.

– Se eu tocar aqui o trocador não vai reclamar, né trocador? - disse, olhos no trocador.

O trocador se rendeu e riu. Esse riso - ainda tímido - marcou o momento em que ele aceitou que trocar não era a única coisa que ele poderia fazer enquanto trocador. Rir também era permitido.

Em segundos, com cuidado na curva, o violonista tirou seu instrumento preto da capa, que caiu ao chão. Do violão, inclinado para não atrapalhar a passagem de quem viesse pelo corredor, começaram a sair alguns sons desordenados.

– Você toca também? Canta? – Toco, mas cantar… só canto no chuveiro. Não sou bom. Mas canto no ônibus também. Pode tocar que eu canto. – O que você canta? – Um pouco de tudo. – Vamos ver se você conhece essa então.

E fez ele uma pestana na quinta casa. Reconheci o acorde: era um ré menor. Antes que ele tocasse, arrisquei:

– Essa aí eu conheço! É Pink Floyd. Another Brick In The Wall. – Vish… quase, quase. Acho que você não conhece, mas vamos lá.

E começou a tocar um ritmo que realmente não era o que eu esperava, e que também não reconheci. E depois de um tempo, eis que ele abre a boca:

– Não posso ficar…

E, para sua surpresa, que ficou evidente em um sorriso enleado ao canto, completei eu:

– … nem mais um minuto com você!

E seguimos, juntos, como dois… bom, eu não saberia fazer uma comparação precisa. Como duas pessoas cantando uma música, simplesmente. Sem vergonha, medo ou medida.

– Sinto muito amor, mas não pode ser… Moro em Jaçanã. Se eu perder esse trem… que sai agora às 11 horas… só a-ma-nhã de ma-nhã!

E seguimos a música sem observar a reação dos passageiros normais do ônibus. Eram normais? O preconceito me disse que sim, e me convenceu de que era essa uma hipótese que dispensava qualquer esforço de verificação. Não importava. Grande Adoniran Barbosa… “Não posso ficar, não posso ficar…”. E o violão se silenciou. O trocador continuava rindo, com apenas metade da timidez de 3 minutos atrás.

– Você é universitário? – Sou, sim. – Estou precisando de um universitário. Um universitário que ainda não entrou no sertanejo. Porque depois que entra… fica triste, né?

Apenas ri. E ele continuou:

– É que fiz uma música e queria um universitário pra fazer uma letra pra mim. Ouve aí. Ainda não tem letra, só a música.

Tirou um capotraste da capa de couro ignorada desde então, que colocou na quarta casa do braço do violão. Novamente, começou a tocar. Tocava e olhava para mim, que só sorria e sinalizava com a cabeça como se estivesse gostando da música. Sinceramente, eu não escutava muito bem. O barulho normal do ônibus não me permitia apreciar a criação de meu mais novo amigo. Mas já estava divertido o suficiente e me contentei em vê-lo tocar.

– Gostou? – Gostei, gostei… – E agora, o que vamos cantar? Lobão, você conhece? – Êta… conheço não. Sei que ele existe, mas não conheço as músicas. – Hmm. Trocador, o que vamos cantar agora?

A outra metade da timidez já havia ficado no último ponto de ônibus.

– Deixa ele tocar uma! - disse o trocador. – Então toca aí. Só cuidado na curva.

Nisso, o violão caiu em minhas mãos. Como recusar? Se o trocador, a autoridade local, havia permitido a festa, a oportunidade não poderia ser perdida.

– Então vamos lá. Vamos cantar a música que eu achei que você ia tocar. Another Brick In The Wall.

Ajeitando o violão em uma posição levemente desconfortável (o que não fazia a menor diferença), preparei o mesmo ré menor que meu amigo havia tocado há 5 minutos. Mas comecei a tocar um ritmo diferente. Ele me seguiu, em silêncio, balançando a cabeça com movimentos mais bruscos que o esperado O subestimei. Ingenuidade, a esta altura do campeonato, esperar um balançar de cabeça normal! “Normal” não era uma palavra presente no dicionário naquele momento. E começamos:

– We don’t need no education!

Normal, a partir desta hora, seria que nós dois cantássemos alto, alegres e sorridentes. Mas ah… “normal”? Percebi que nossa voz soou muito mais alto do que o esperado. O barulho do motor do ônibus não me permitiu a certeza, mas havia eu ouvido batidas sincronizadas com a música? Só no próximo verso é que me preocupei em estar atento ao resto do ônibus.

– We don’t need no thought control!

Era verdade. Vi outras 4 pessoas cantando alto. Uma delas, inclusive, batendo violentamente na própria perna no ritmo da música, como se aquele momento fosse mais importante que seu próprio corpo. O trocador… ainda ria. Esse era seu estado normal daquele momento em diante.

– No dark sarcasm in the classroom! Teachers leave them kids alone!

Sorrisos ocupam nossos rostos em situações das mais diversas. Em especial, seres humanos sorriem quando encontram boas surpresas. Talvez seja por isso que todos os que cantavam, inclusive eu, cantavam sorrindo. Menos meu amigo ainda anônimo. Não era surpresa para ele.

– Hey! Teachers! Leave them kids alone!

A cada batida no violão eu entendia melhor o que estava acontecendo. Sim, havia 6 pessoas no 4110 cantando Pink Floyd às 9:10 da noite em uma quarta-feira que tinha tudo para ser um dia normal, mas se esqueceu de ser.

– All in all it’s just a-a-nother brick in the wall! All in all you’re just a-a-nother brick in the wall!

Rua Padre Eustáquio, mil e oitocentos e alguma coisa - foi o que li ao olhar pela janela do ônibus. Lembrei que desço próximo ao número dois mil, o que significava que era hora da despedida. Já havia sido um dia memorável.

– Vou ter que descer. Valeu demais! – Ah, vai descer… tranquilo. Falou! – Como você se chama? – Bruno. – Prazer! Gabriel! – Prazer!

E, olhando para o menino que se sentava a um metro e meio de distância, acenei e disse:

– Falou, Rogério! – Falou!

Me levantei, segurei para não cair com a freada do ônibus e desci pela escada, como um passageiro normal faria. O trocador sorria, o que acabara de se transformar em algo completamente normal. Mas se algo foi normal nesta história, afirmo com alegria que não ocupou mais que o primeiro e o último parágrafos. 2 de 43. Parece bom para mim.

Gabriel Poesia
Computer Science PhD student